Aquele pequeno ribeiro não seria pròpriamente um rio, até porque me lembro, teria cerca de cinco, seis anos e percorrer não só as suas margens, como também atravessá-lo a pé em vários locais. Estaríamos, talvez, nos meses do Verão, é possível, até porque havia sinais evidentes mais a montante de alguma ferocidade do dito ribeiro, os estragos eram evidentes no que restava de uma ponte de pedra, com um tamanho razoável na margem esquerda, mas quase inexistente na outra margem e a separar estas ruínas era o vazio e lá no fundo as águas do dito rio Mau, assim chamado, deslizavam numa zona mais central recheada de seixos bastante grados,quase arredondados e que não davam muito jeito para ser pisados, talvez, porque os pèzitos eram naquela tenra idade um suporte frágil, de um corpo que não poderia ter sólido equilíbrio. Os humanos haviam remediado a queda da referida ponte de pedra, com a colocação um pouco mais a jusante de uma improvisada ponte de madeira que garantia a passagem às pessoas e aos animais de pequeno porte, uma vez que os carros de bois e mesmo estes grandes animais faziam a travessia pelo próprio ribeiro nas zonas pré-determinadas e que eram, naturalmente, as zonas mais baixas... A água era límpida, via-se com nitidez que assim era e não havia razões para supôr que assim não fosse, por se tratar dum ribeiro que teria as suas origens numa escarpa montanhosa ali bem próximo e numa das fraldas da "Serra da Boneca"; as pequenas casas junto da ponte semi-destruida eram o início ou o fim do povoado na margem direita e até à nascente, ribeiro acima , não havia sinais da existência de mais seres humanos, excluindo naturalmente o polo da Estivada, local previamente escolhido para a montagem dos abençoados moinhos que movidos de forma engenhosa pela força dum pequeno caudal, transformavam em farinha alqueires e alqueires de milho!... Neste local ermo, solitário, algumas pessoas durante décadas e décadas levaram para diante um trabalho NOTÁVEL para que muitas das famílias de Rio Mau, Melres e Sebolido tivessem acesso a um pão de milho de óptima qualidade e que seria desejável que nunca faltasse na mesa de todas estas criaturas... Aí pelo ano de 1949 ou 1950 na companhia de miúdos mais crescidos tive a felicidade de conhecer um ponto mais ousado do ribeiro, que me fascinou e que ficava já nas fraldas da serra: o tão falado Poço Negro! Tinha a forma natural duma represa e fiquei com a ideia que a água penetrava naquele espaço em queda e duma forma desordenada; recordo muito vagamente de que os miúdos que já sabiam nadar, que não era o meu caso, se iam colocar por baixo do já referido caudal que se despenhava tão desajeitadamente logo no início do referido POÇO! Numa zona quase central salientava-se uma espécie de pequeno rochedo, e era o único, que emergia das águas e servia à miudagem como ponto intermédio de apoio. Desconheço qual a razão do baptismo, mas poderá muito bem ser derivado à côr escura das águas em algumas zonas do POÇO e que eram de tal profundidade, que não se conseguia ver o fundo!... Apesar de tudo se ter passado há cerca de sessenta anos fiquei com a ideia de ser uma zona muito resguardada pela encosta e pelo arvoredo, que não me pareceu muito denso; as águas eram frescas, quase frias e a temperatura do ar ligeiramente inferior à da aldeia, uma vez que ali e por ser Verão, o Sol incidia com toda a sua plenitude sobre a aldeia e o Douro com um caudal bem reduzido e num plano demasiado inferior, muito pouco poderia amenizar... Presumo, que ainda hoje a situação seja bastante próxima à do final da década de QUARENTA do século passado, mas não há essa garantia, a julgar pelos erros que têm sido cometidos pelos humanos um pouco por toda a parte... Esperemos que no caso em concreto não tenha havido nenhuma má influência, para que os miúdos do século XXI possam também usufruir, tal como eu, com alegria e prazer dum espaço natural como era o POÇO NEGRO!...
Foi para mim extraordinário recordar o primeiro momento mais marcante e mais feliz em que tomei parte, pelo acto de profunda liberdade ao contactar com uma natureza sem donos e sem as transformações que quase sempre desvirtuam!... Se aquilo não era o PARAÍSO de que muitos falam, foi com certeza o melhor PARAÍSO que conheci, ou pelo menos, assim quero acreditar!...
Na minha última ida a Rio Mau, em Setembro deste ano, pela conversa que mantive com os meus conterrâneos, pude concluir que vivi equivocado durante sessenta anos, por pensar que tinha conhecido em miúdo o famoso Poço Negro, quando na verdade se tratava da LEVADA! Não importa, o erro já está a ser corrigido e continuo a afirmar a outra grande verdade, essa sim, para mim muito importante, quando com seis ou sete anos visionei com toda a Liberdade um espaço cem por cento natural, num dia quente de Verão e na companhia de outros miúdos e em que fiquei com a sensação de que tudo ali se conjugara para que existisse de facto uma HARMONIA e uma PAZ que durou todo aquele espaço de tempo e vivo com a ideia de que tudo isto só foi possível, porque estaria a começar a descobrir coisas novas e belas, convencido que seria só o começo e que de seguida viriam muitas mais coisas BOAS e BELAS... e sempre MARAVILHOSAS!
O miúdo estava tão enganado!... Acreditava, porque não tinha a memória que agora já tem, que é o que se passa com os demais humanos; aos sete anos nem os GÉNIOS têm MEMÓRIA!
Apesar das muitas vicissitudes e de coisas muito belas que ajudamos a conseguir pela vida fora, reconheço que foi fantástico ter conhecido a LEVADA e usufruido de toda aquela envolvência natural, que deixou em mim a ideia de que a FELICIDADE mora sempre paredes meias com o Homem, só que o sonho muitas vezes lhe escapa!... E é uma pena...
Agora, começo a sentir uma vontade interior enorme de não só revisitar a LEVADA e levar a aventura um pouco mais além, até encontrar o tão badalado POÇO NEGRO!
O SONHO JÁ MORA CÁ...