Todas as pessoas trazem agarradas a si memórias, muitas memórias e das mais diversas, sendo certo que uma boa parte se vai perdendo com o tempo, por não ser possível registar tantos acontecimentos, quando nós próprios também não lhes damos essa importância, como é óbvio.
Há factos, que nos marcaram pelos mais váriados motivos, uns porque foram determinantes nas nossas vidas, outros pela raridade, ou mesmo pela novidade, como os que a seguir vou narrar e que calei durante várias décadas...
Teria os meus dezasseis anos e na época, (final dos anos cinquenta) era comum ver os miúdos a participar nas tarefas da Carbonífera a partir dos catorze anos, colaborando dessa forma com o baixo salário para as despesas familiares. Integrávamos como aprendiz, os serviços de apoio nas oficinas de uma empresa mineira, numa falésia sobranceira ao rio Douro e numa tarde quente do Verão de 1959, quando penetrava na galeria principal, para dar continuidade a um serviço no Poço Mestre de Germunde, a uma profundidade de cem metros, fui surpreendido pela voz autoritária de um eng. técnico dessas minas e que a uma distância de uns vinte metros, exclama:- «OLHA SE CALAS O ASSOBIO!...»
Na ocasião, achei desajustada a forma autoritária com que fui admoestado, porque assobiar no interior de uma galeria, não seria caso que justificasse tamanha reprimenda, mas lá calei o assobio e o nosso homem deve ter ficado com o ego favorecido, por sentir que tivera mais uma "grande vitória", numa curta disputa, sem sentido, perante um jovem ainda despido de memórias, mas já com sonhos, naturalmente...
Pouco tempo depois e por mera casualidade, escutava da boca de um tubista das minas, uma história para mim um pouco perturbadora e que não mais iria esquecer:
« O nosso tubista, nessas minas de carvão, contava a dois ou três mineiros, que, no desempenho da profissão junto do Poço Mestre, quando estava a ser construído, evitara, com alguma genica e sorte, que um eng. em desiquilíbrio, caísse ao referido Poço, que na ocasião teria cem metros de profundidade... O tempo foi passando, até que chegara o momento desse mesmo eng. apreciar uma pequena questão, passada nas oficinas da mina e a determinado momento manda chamar ao seu gabinete o nosso tubista e comunica-lhe a decisão de lhe aplicar 20 dias de castigo, ( sem vencimento ) tendo ainda o cuidado de acentuar, que estava a ter em conta, o facto de lhe ter salvo a vida!...
O homem, que tinha vários filhos, lamentava-se com alguma raiva e frustração, por considerar o castigo injusto e desproporcionado, e, por entender, agora, que em devido tempo, deveria ter deixado que o destino se cumprisse, permitindo a queda e a morte do referido engenheiro, enquanto recordava as suas palavras na ocasião do desiquilíbrio :-AH MEU SANTO, SALVASTE - ME A VIDA !...»
Só falta desvendar, que não será por acaso, que este mesmo eng., que apreciava castigar tão severamente os humildes - mesmo a quem lhe salvara a vida - foi o mesmo que mandou calar o meu assobio, e, já muito mais tarde, após o 25 de Abril, viemos a saber um pouco mais:
HAVIA SIDO COMANDANTE DA LEGIÃO PORTUGUESA, NA CLANDESTINIDADE, OU SEJA, SERVIRA O FASCISMO COM MILITÂNCIA!...